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Violência, saúde e trabalho: a intolerância e o assédio moral nas relações laborais

Violence, health and labor: intolerance and bullying in labor relationships

Resumo

O artigo analisa a intolerância e suas manifestações nas sociedades modernas, em particular nos espaços de trabalho. Vários autores vinculam a intolerância a raízes biológicas, outros a processos sociais. O artigo dialoga criticamente com esses referenciais e propõe uma perspectiva dialética apontando que a intolerância nas relações de trabalho tem se expressado por meio de atitudes violentas, discriminatórias, irônicas, doentias e recorrentes, que configuram o assédio laboral estimulado pela forma de o capitalismo organizar o trabalho na contemporaneidade.

Palavras-chave:
Intolerância; Assédio; Trabalho

Abstract

In the article it is analyzed intolerance and the ways it manifests itself in modern societies, particularly in workplaces. Several authors link intolerance with biological roots, others link it with social processes. We talk about such references critically and propose a dialectical perspective showing that intolerance manifests itself through violent, discriminatory, ironic, morbid and recurrent attitudes in labor relationships, and they show the bullying in workplaces is stimulated by the way labor is organized in capitalism in the contemporary times.

Keywords:
Intolerance; Bullying; Labor


1. Introdução

Talvez o leitor considere uma questão desnecessária falarmos em intolerância social se nos propomos a refletir sobre violência, saúde e trabalho. De certo modo, é compreensível. Contudo, a intolerância social não para de crescer nas diferentes nações, muitas vezes sob o manto do medo e do ódio. Paixões tristes, que negam a humanidade do outro, diminuindo-o, desqualificando-o ou perseguindo-o. Enquanto para alguns autores a intolerância está no início do ódio (Wiesel, 2000WIESEL, Elie. Prefácio. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.), para outros ela tem raízes biológicas, instintivas, manifestando-se como marcas do território e reações emocionais superficiais, como vemos nos animais não racionais (Lorenz, 1973LORENZ, Konrad. A agressão. São Paulo: Martins Fontes, 1973.). Entre os humanos, contudo, a intolerância tem raízes mais complexas, sendo uma construção histórica e um produto cultural, uma vez que a intolerância inexiste fora do social, não estando alheia à consciência.

Ao longo da história, temos exemplos variados de recusa ao outro, sendo o mais conhecido a intolerância às ideias de Sócrates, que culmina com um evento histórico: a morte dele que inaugura a ética moderna, por estabelecer uma virada na história mundial, assinalando mudanças nas atitudes humanas frente à moral e à ética. Séculos depois, na Idade Média, a desconfiança em relação às mulheres e a consequente doutrina de perseguição e caça às bruxas deixam sua marca. Se retrocedermos alguns degraus temporais do século passado, constataremos que Hitler, por exemplo, perseguiu judeus, negros, gays e comunistas à procura da raça pura. Em sua busca, aniquilou milhões de pessoas em nome de uma crença. Se olharmos o que está por trás desse núcleo da intolerância, encontraremos uma matriz étnica/racial, de gênero e classe, que valoriza as diferenças biológicas entre os seres humanos e afirma a superioridade de alguns sobre outros. Aqui, o biológico não fica subsumido no social; ao contrário, inverte-se e toma o lugar dele. E, nesse sentido, nada é mais característico dos movimentos totalitários que a rapidez com que os atos de violência são esquecidos, banalizados e até naturalizados (Arendt, 1994ARENDT, Hannah. Da violência. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.), constatação que fazemos nos dias atuais, em que as velhas formas de intolerância e atos de violência continuam presentes. Mesmo quando se apresentam em novas configurações e manifestações, algumas vezes explícitas, outras sutis, banalizadas e apresentadas imageticamente de forma espetacular. A intolerância pode revelar-se pelas xenofobias, medo ao estrangeiro, fundamentalismo religioso e/ou ódio cultural. E usa-se o medo como uma ameaça constante, quer socialmente, quer no trabalho. Aqui, se falar criticamente ou adoecer, pode perder o emprego; mas se ficar calado, pode não ser compreendido, ser discriminado e, por fim isolado, pois a intenção é a destruição da identidade do outro!

Igualmente, a violência no trabalho desponta em múltiplas configurações, de forma intensa e viva; apresenta contornos sutis que nos confundem e nos levam a cogitar sobre a possível multiplicidade de atos individualizados, mal-intencionados e até perversos. São relações laborais que explicitam a plenitude das relações sociais competitivas, individualistas, consumistas, sem respeito ou reconhecimento ao fazer do outro. Se na aparência parecem distintas, na essência nos falam do mesmo fenômeno: da relação antagônica entre capital e trabalho. Dimensão que amplia nossa compreensão sobre as causas dos atos de violência e assédio moral no local de trabalho. Também nos impõe um novo olhar investigativo, voltado para os espaços confinados do intramuros, em contraposição aos espaços públicos. Por que afirmamos isto? Porque o mundo do trabalho mudou de forma significativa nesses últimos trinta anos, a tal ponto que as certezas que antes faziam parte da vida de um trabalhador foram substituídas por incertezas, medos e angústias. Ter bom desempenho ou ser leal às normas e princípios éticos não é garantia de permanência no emprego. O mais importante é ultrapassar a meta e dar produtividade, não importa como, ou melhor: não se tolera os improdutivos, independentemente das causas. Não se tolera os críticos das jornadas extenuantes. Não se admite que adoeçam. Os dirigentes sindicais e até os filiados são recusados ou mesmo negados como categoria. São novos tempos que impõem mudanças de comportamento, mentalidade e cultura. Entretanto, uma hierarquia rígida, mesmo que travestida de autonomia, subsiste.

2. A intolerância social para além do trabalho

A intolerância pode ser conceituada como a expressão de uma vontade de assegurar a coesão daquilo que é considerado como saído de si, idêntico a si, que destrói tudo o que se opõe a essa proeminência absoluta. Não se trata, jamais, de mero acidente de percurso; existe uma lógica da intolerância em nossas sociedades. Ela serve aos interesses que se julgam ameaçados (Héritier, 2000HÉRITIER, Françoise. O eu, o outro e a intolerância. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.). Aqui, os atos de violência encontram ambientes propícios para nascer quando, por exemplo, separam-se as pessoas em grupos distintos, concebidos como desiguais àqueles que estão adoecidos em virtude do trabalho e não alcançam a meta imposta, o que "ameaça" uma maior lucratividade. Nessa lógica, os adoecidos e improdutivos são categorizados e considerados "não confiáveis", e, por isso, se tornam indesejáveis no espaço laboral. São rejeitados mediante o mais ultrajante escárnio da nossa época, ou seja, junto aos "mais velhos", aos "críticos", aos "dirigentes combativos", aos que "não se submetem às práticas ilícitas" etc., compõem o "time" que ameaça o status quo.

A intolerância possibilita e permite atitudes e comportamentos que prejudicam grupos e pessoas tanto no mundo do trabalho quanto socialmente, em qualquer setor ou ramo de atividade, países e/ou continentes. Um bom exemplo são as agressões perpetradas contra homossexuais, negros, judeus, os sem-teto e imigrantes haitianos ou bolivianos nas ruas dos grandes centros urbanos, originando um ciclo de terror que silenciosamente avança entre os jovens brasileiros ante a omissão sistemática das autoridades (Dias, 2013DIAS, Adriana. A explosão do ódio. Entrevista concedida a Marcio Sampaio Castro. Carta Capital, São Paulo, 2013.). No outro extremo está o "politicamente correto" americano, que nasce da necessidade de tolerância a todas as diferenças e, no entanto, na medida em que assume uma forma ritualista de linguagem cotidiana, se torna uma modalidade de fundamentalismo (Eco, 2000ECO, Humberto. Definições léxicas. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.). Seria politicamente correto sermos tolerantes ante os atos que discriminam, maltratam, constrangem, ignoram, isolam e excluem o outro, seja socialmente, seja no mundo do trabalho? E, de forma contrária, devemos ser tolerantes perante atos de intolerância religiosa, racial/étnica e violência de gênero, quando praticados socialmente? Qualquer que seja a base da intolerância (fundamentalismos, integralismos, racismos e outros atos de violência), são construções sociais que implicam a existência de uma doutrina de sustentação, mesmo quando estamos diante de práticas que exploram e cultivam, embora sutilmente, o ódio às diferenças (Eco, 2000ECO, Humberto. Definições léxicas. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.). Poderíamos dizer o mesmo da discriminação de gênero, da violência psicológica, do assédio sexual e moral, respeitando suas múltiplas e diferentes configurações, conjunturas e ocorrências.

Socialmente, por exemplo, é prática comum reduzir os habitantes do Nordeste brasileiro ao status de preguiçosos, vagabundos, incapazes, analfabetos. O mesmo pode ocorrer com as mulheres latinas em países do continente europeu, quando vão à procura de emprego. São vistas como prostitutas, levianas, por serem simpáticas, comunicativas e de fácil verbalização. Humberto Eco (2000)ECO, Humberto. Definições léxicas. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. lembra que, na Itália, nesses últimos anos, imigraram muitos albaneses. Alguns dos que entraram no país se tornaram ladrões ou prostitutas, é certo. No entanto, mediante processo de simplificação e estereótipo, deduz-se que todos os albaneses são ladrões e prostitutas. E assim tem sido a intransigência com relação às opiniões, atitudes, crenças, modo de ser que reprovamos ou julgamos falsos. A intolerância reprime, por meio da coação ou da força, as ideias que reprova, na medida em que outra convicção pode se voltar contra as minhas. Clássica é a história de Martinho Lutero no século XVI, fervoroso monge agostiniano que se insurge contra a Igreja Católica, sendo posteriormente excomungado.

Não é difícil constatar que na contemporaneidade a intolerância continua sendo, infelizmente, "uma ferramenta mental" poderosa e se manifesta em diferentes espaços sociais, quer via práticas discriminatórias e racistas, preconceitos, humilhações, ou mesmo em atos de insultos morais que podem se concretizar em agressões físicas. Portanto, não nos causa estranheza, ao analisarmos o mundo do trabalho, a constatação que, em todos os continentes, e em especial em nossa América, desde o México até a Argentina, são as grandes empresas que geram os piores empregos, imprimindo, ideologicamente, uma sistemática corporativa (Klein, 2008KLEIN, Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2008.). Isso ocorre graças ao aumento das terceirizações e às novas formas de contrato que visam menores gastos. Situação semelhante e causas diferentes vivem os mais jovens em nossos países, na medida em que persiste a pobreza e onde a marca dominante em nossa região é a baixa penetração de bens públicos de qualidade (Monteiro e Rocha, 2013MONTEIRO, Joana; ROCHA, Rudi. Drug battles and school achievement: evidence from Rio de Janeiro's favelas. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, Instituto Brasileiro de Economia, jun. 2013.), seja nas favelas, seja nos bairros periféricos dos grandes centros urbanos. Isso significa escolaridade de baixa qualidade frente a uma alta taxa de desemprego em 13,6% (OIT, 2013ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Relatório Tendencias Mundiales del Empleo Juvenil. Una generación en peligro. Oficina Internacional del Trabajo. Ginebra: OIT, 2013. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_212725.pdf>. Acesso em: 2 maio 2015.
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), disputadas por cerca de 106 milhões de jovens que vivem em nosso continente. A falta de perspectiva ante o mundo do trabalho globalizado em constante mutação, e que exige múltiplas competências, pode determinar o aparecimento de uma geração sem confiança no futuro, insegura, solitária e com medos; sem emprego ou com emprego de baixa remuneração. Na sociedade japonesa, por exemplo, milhares de jovens vivem isolados de tudo e de todos, incapazes de manter um verdadeiro diálogo com seus pais. Evitam o contato com o exterior como uma estratégia de resistência à excessiva dominação e vivem centralizados no seu quarto, sendo seu único contato externo a televisão e a internet, lugar de infelicidade, vergonha e destino. Como se não bastasse esse tormento, são vistos como mensageiros da síndrome Hikikimori.

No Brasil, por exemplo, a discriminação racial é tão severa quanto o preconceito em si, apesar das inúmeras campanhas por igualdade de direitos e contra as práticas racistas. Ter acesso à educação e, portanto, ao mercado de trabalho constitui sério obstáculo para negros e pardos, os quais representam, segundo o IBGE, 51,1% da população brasileira. São os pobres, negros e pardos os que mais são objeto de variados atos de intolerância, seja social ou laboral. Ecoaria estranho ouvirmos histórias sobre jovens executivos da camada média alta que, a caminho do trabalho, ouviram acusações estapafúrdias. Ou que ao usar uma blusa vermelha despertou ódio no outro. Entretanto, se for um homem de chinelo, negro, que se dirige ao estacionamento, será facilmente confundido como ladrão de seu próprio carro. E se for jovem e negro, correndo em direção ao último ônibus que vai para seu bairro, será parado por policiais, revistado e questionado. Se estiver em manifestação lutando por direitos, tem chances de ser preso, levado para a Unidade da Polícia Pacificadora (UPP) e inclusive ser assassinado, como aconteceu recentemente com o trabalhador Amarildo, ajudante de pedreiro, morador da favela e acusado de envolvimento com drogas. São fatos que acontecem repetitivamente em quase todos os estados do país, mostrando indiferença ao sofrimento do outro, enquanto a intolerância passa a fazer parte desse cenário como algo natural.

Paradoxalmente, a solidariedade às famílias de jovens de classe média e alta em seus momentos de dor, seja em tragédias de boates ou em protestos de asfalto, contrasta com a irrelevância e a indiferença ao cantor assassinado em pleno palco ou o morador de favela chacinado a cada dia, na porta do bar ou na esquina de sua casa. São histórias cujo traço comum é ser pobres e negros. São exemplos da intolerância social enquanto instrumento de controle e declaração do poder nas relações sociais. Reafirma a autoridade do Estado e o dever de consentir (Wiesel, 2000WIESEL, Elie. Prefácio. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.) em ser controlado, coagido e vigiado, constituindo a forma mais extrema de violência de "um contra todos".

Se formos para o âmbito internacional, teremos como fato recente a denúncia da invasão de privacidade e controle exaustivo dos internautas via XKeyscore e outros sistemas para obter interceptação "em tempo real" das suas atividades. Ironia destes tempos conturbados: os Estados Unidos, que durante tantos anos apresentaram-se como defensores da liberdade e guardiões dos direitos humanos, sofrem, impotentes, à humilhação de ver um jovem cidadão - Snowden - sentir-se mais seguro na Rússia que em seu território e que fala em agir por uma decisão comum (Espinosa, 1992ESPINOSA, B. Ética. Lisboa: Relógio D'Água, 1992.).

Quer sejam os Estados, seus representantes legais ou empresas, ao controlar as relações pelas diferenças de classe, religiosas, políticas, étnico-racial e sexual, segundo interesses específicos e particulares dessas instituições, eles negam toda a riqueza veiculada pela linguagem. Quando se interdita a palavra e quando o verbo é impedido, o homem deixa de ser livre. Basta que o diálogo fracasse e o respeito às diferenças inexista para o ódio brotar em todo o seu esplendor. Dito de outra maneira: o totalitarismo não impede de falar, e sim obriga a falar! Deste modo, quando a intolerância torna-se imperativo categórico, a violência toma o lugar da linguagem, desembocando em humilhações, discriminações, desqualificações, indiferença e negação do outro enquanto SER de direitos. O que é pior: o espírito colonial, internalizado em todos nós e que ao longo dos séculos impôs sujeição aos nossos países, na atualidade torna-se visível que o "império" já não tolera limites - nem legal, nem moral, nem territorial. Todas as leis podem ser transgredidas; toda soberania, violada; todo direito humano, ignorado; toda paz, indesejada. Portanto, a intolerância pode se apresentar em atos violentos, diretos ou indiretos, explícitos ou mesmo sutis, que se agravam à medida que se repetem, intensificam e perpetuam! E, nesse sentido, tolerar um mal é tão grave quanto o ato de cometê-lo (Canto-Sperber, Wismann e Nakamura, 2000CANTO-SPERBER, Monique; WISMANN, Hein; NAKAMURA, Yujirô. As doutrinas filosóficas In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.).

A intolerância ao outro se mostra como elos de uma corrente, onde um anel se prende ao outro, sustentando o fluxo e o refluxo de atos e práticas que devastam, gerando dor e sofrimento. Perguntamos: devemos esquecer a intolerância social? A resposta seria NÃO, uma vez que a intolerância política torna-se étnica, em seguida religiosa, ou vice-versa (Soyinka, 2000SOYINKA, Wole. Intolerância e direitos do homem: o preço do revisionismo. In: BARRET­-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.), e, consequentemente, não leva em conta a diversidade, na medida em que todos somos diferentes uns dos outros. Somos reconhecidos por nosso modo de viver e agir, pelo comportamento moral e valores assumidos, por nossos gestos e atitudes, por nossa profissão e personalidade, formação religiosa, opção política e classe social a que pertencemos, bem como relações de gênero, entre tantas outras dimensões. Quando não reconhecemos o outro como igual em direitos e simultaneamente diferente de nós, vemos esse outro como o de fora, o que possibilita tratá-lo com desprezo e indiferença. Aqui, o que está em jogo, como lembra Paul Ricoeur (2000)RICOEUR, Paul. Etapa atual do pensamento sobre a intolerância. In: BARRET-DUCROCQ, F. et al. A intolerância: Foro Internacional sobre a Intolerância. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000., é nada menos que a relação a ser estabelecida entre o individual e o coletivo, o universal e o histórico, na luta incessante e cotidiana contra a intolerância, os preconceitos, a xenofobia, as discriminações de gênero, mostrando um caldeirão de antagonismos e contradições em ebulição.

3. A intolerância nas relações laborais e a desmistificação dos discursos

No final do século XX, o mundo do trabalho sofreu mudanças importantes, motivadas pela reestruturação produtiva pós-fordista. Sua substância está organizada por práticas intransigentes, modeladoras de novas posturas, condutas e valores. Do mesmo modo, estimula-se a competição entre os pares e fixa-se a indiferença ao sofrimento do outro, revelando que as novas formas de organizar e administrar o trabalho propiciaram a atomização do indivíduo (Morin, 2011MORIN, Edgar. Rumo ao abismo? Ensaio sobre o destino da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.), seu isolamento e consequente esgarçamento dos laços afetivos, além de rompimento do espírito coletivo. Ao suprimir a liberdade da ajuda mútua, do senso de comunidade, dos laços de camaradagem, a empresa instituiu o mito dos colaboradores resilientes, da livre escolha, do empreendedorismo, da missão comum, da sustentabilidade, da ética corporativa.

Felizmente, o mito contido no novo discurso se desmascara quando a "coruja de minerva levanta voo ao entardecer", ou melhor, percebemos os atos de intolerância em sua plenitude, no próprio processo, revelando que a palavra e o ato se fragmentaram e se distanciaram, já não pertencendo a nenhum dos dois lados. E precisamente por isso há uma tendência a classificar o trabalhador em grupos distintos segundo a capacidade de ultrapassar a meta produtiva (vitoriosos versus fracassados); submetê-lo a jornadas prolongadas em ritmo intenso; forçá-lo a aceitar a precarização das condições de trabalho sem reclamar; trabalhar por dois ou mais, mostrando-se flexíveis ante as demandas fragmentadas; suportar as dificuldades mostrando-se resiliente; ser capaz de recuperar-se de imediato, vencendo obstáculos e tolerando as pressões, sem qualquer perturbação interior. Nessa interseção, mostra-se de forma nítida a corrupção dos novos modos de organizar e novas formas de administrar o trabalho.

Tendo como desculpa a otimização de resultados e ganhos de escala e produtividade, fragmenta-se a força de trabalho, dividindo-a entre trabalhadores periféricos e centrais, sob os quais se exige a interminável necessidade de adaptações (Ramos e Dutra, 2013RAMOS, Gabriel de Oliveira; DUTRA, Renata Queiroz. Tendências esmobilizadoras oriundas da terceirização e da precarização trabalhistas: reflexos na atuação sindical. In: CONGRESO CUBANO DA ALAB, Havana, 2013. (Mimeo.)), aceitações, consentimentos, entrega total do seu tempo e de sujeições. Isso significa que todos devem agir conforme o determinado e sem questionamentos ou oposições. A desigualdade aqui compreendida está no campo da política e do poder, na medida em que o outro é "dessemelhante a mim". Se é desigual a mim, não é de estranhar que devo mandar e o outro obedecer, segundo as hierarquias instituídas, pois "sem isto não há poder" (Arendt, 1994ARENDT, Hannah. Da violência. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.).

Essa noção nos remete ao surgimento do Estado-nação e da "empresa-mãe", no final do século XVI e começo do XVII, cujo conceito governamental abrangia o "domínio do homem pelo homem", representado pela burocratização dos sistemas e concepções religiosas, tanto pelo castigo, quanto pela culpabilização ante a desobediência aos mandamentos e normas. Não obstante, são as diferenças individuais que nos unem à "indivisível raça humana", mesmo quando tendemos a ver o outro que não tem os mesmos atributos que os nossos de uma forma negativa, considerando-o, com certa frequência, inferior a nós. Se desviarmos o olhar para os jovens que buscam emprego, constataremos que nos próximos anos, para cada cem jovens, 12,6% estarão desempregados; hoje, a maior taxa de desemprego está no Oriente Médio e no Norte da África (23,7%). Na América Latina e no Caribe, o percentual de jovens que não estudam nem trabalham é de 19,8%, com exceção de Cuba.

Na Europa, o desemprego dos jovens tem relação com a crise de 2008, sobretudo nas nações pertencentes à zona do euro, enquanto no Brasil os jovens desempregados, são, em sua maioria, pobres, do sexo feminino, negros. Fazem parte desse contigente, as mulheres que tiveram filho muito cedo e não têm com quem deixar as crianças nem contam com assistência pública, o que constitui um empecilho para sua entrada no mercado de trabalho. Essa juventude recebe o nome de "nem-nem", ou seja, nem estuda, nem trabalha. Não porque não desejam. Esses jovens pobres, mesmo quando têm onze anos de escolaridade, estão excluídos antecipadamente das corporações que selecionam corpos de "boa aparência", ou seja, brancos e que saibam falar duas ou mais línguas, que possuam experiência e mostrem competências já no primeiro emprego.

Para a OIT (2013)ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Relatório Tendencias Mundiales del Empleo Juvenil. Una generación en peligro. Oficina Internacional del Trabajo. Ginebra: OIT, 2013. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/documents/publication/wcms_212725.pdf>. Acesso em: 2 maio 2015.
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, é preciso uma combinação de políticas ativas do mercado de trabalho, melhorias na educação e formação profissional, além de programas especiais de apoio ao início da vida laboral, transição entre escola e trabalho e iniciativas de empreendimento juvenil. Talvez seja um começo, mas não a solução! O fato é que enquanto pensarmos o outro como inferior, quer de forma explícita ou velada, estamos considerando-o apropriado para a servidão, a sujeição, a escravidão, a humilhação, o que permitirá ser indiferente a sua presença tanto em trabalhos precários, terceirizados, quanto sua exclusão social, demissão e banimento do meio laboral. São processos nos quais se sobressai o desprezo à vida daquele distinto de mim, o que facilita e permite ultrajar a dignidade dos trabalhadores, desvalorizar a pessoa deles e violar o direito de serem donos de si mesmos. Em síntese, o capitalismo reestruturou sua forma de produzir, agir e administrar o trabalho, objetivando maior produtividade e lucratividade, mesmo que à custa de demissões, maior pressão moral e medo coletivo ante a política de flexibilização que ecoa por todos os corredores do intramuros, repetindo à exaustão: "Vamos enxugar a máquina"; "Temos que diminuir gastos"; "Olha, pessoal, vamos dar produção, senão a empresa fecha". E, atônitos, todos vivenciam e testemunham, com medo e em silêncio, os novos acontecimentos.

3.1 A intolerância nas relações de trabalho e sua íntima relação com o assédio moral

Não querermos ser repetitivos em análises, contudo é impossível não assinalarmos, mais uma vez, algumas mudanças que ocorreram nas três últimas décadas, como: as transformações políticas, econômicas e sociais que compõem o cenário contemporâneo. Mudanças que chegaram acompanhadas por privatizações, fusões e desregulamentações, com vistas à redução dos custos e encargos patronais. Nesse cenário, vale destacar a moderna atuação do sistema financeiro no mundo dos negócios, impondo mobilidade e liquidez do capital que se mantém coligado e incorporado às grandes transações internacionais.

Com a globalização e as pressões competitivas impostas pelo mercado e pela ascensão do capital financeiro, esse setor entra, também, em um processo de reorganização operacional e do trabalho. E logo surgem as implicações que afetam diretamente os trabalhadores: exigência de maior competitividade e produtividade com menores gastos; terceirizações e precarização das condições de trabalho associado aos baixos salários e jornadas prolongadas, ocultadas sob o manto do banco de horas ou mesmo trabalho em casa associado ao permanente contato por e-mails e celulares, ainda que fora do horário de expediente, caracterizando uma jornada estendida; perda de autonomia e sobrecarga de tarefas, favorecendo o desgaste em consequência do processo de trabalho, o que leva a abalos na relação saúde-doença graças à eclosão de novos riscos que contribuem para o advento de danos à saúde, seja na esfera do sistema osteomuscular ou mental. Portanto, para compreendermos os novos riscos que estão na origem da intolerância e que autorizam a prática do assédio moral, é necessário levarmos em conta as tendências atuais do mundo do trabalho, a saber: a permanente pressão dos empresários para desregulamentar o trabalho e reduzir os direitos dos trabalhadores; a ampliação das práticas flexíveis de contratação da força de trabalho; o aumento dos mecanismos de individualização das relações trabalhistas, que leva à fragmentação dos laços afetivos e de solidariedade, tornando-os gasosos, fluidos, deletáveis, atomizados e desnecessários; o novo discurso empresarial, no qual se dissemina a crença de que todos os trabalhadores são parceiros, empreendedores e colaboradores; o aumento das terceirizações e quarteirizações, inaugurando uma nova rede de precarizações, que eclode em subjetividades precarizadas; o aumento dos acidentes, doenças, transtornos mentais e mortes no e do trabalho (acidentes fatais e suicídio).

Por conseguinte, para compreendermos os novos transtornos relacionados à saúde, faz-se necessário entendermos a relação do trabalhador com o meio ambiente, as condições de trabalho e as relações laborais, pois sentir bem-estar é estar e ter harmonia no local de trabalho; ser criativo e reconhecido no seu saber fazer, uma vez que o bem-estar revela um estado dinâmico da mente com as necessidades e expectativas do trabalhador e seu entorno laboral.

Todos estamos expostos a tensões e conflitos, o que vai demandar em sentidos e significados que contemplam tanto o corpo biológico como o histórico-social, o existencial e as relações de poder, a dimensão da afetividade ética e os direitos humanos fundamentais. Um trabalhador sadio é aquele que apresenta um bom equilíbrio entre corpo e mente; está em harmonia com seu entorno físico e social; controla plenamente suas faculdades físicas e mentais, sem dicotomias. Portanto, ter saúde não é uma simples ausência de doença; mas é ter uma atitude alegre para com a vida e uma aceitação otimista das responsabilidades que ela lhe impõe, uma vez que a vida tem tanto um sentido histórico e social quanto biológico e existencial. E, por conseguinte, poderíamos dizer que ter saúde é uma forma de abordar a existência, de criar valores, de instaurar normas vitais (Canguilhem, 2012CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense, 2012.). E quando somos cotidianamente humilhados e constrangidos no ambiente de trabalho, qual o espaço da saúde? Sabemos que o processo saúde-doença é um acontecimento coletivo, e não simplesmente ou apenas individual.

Nesse sentido, é necessário compreendermos não apenas as mudanças que ocorrem nos espaços do mundo do trabalho, mas como se estabelecem as relações de produção, como vivem e adoecem os diferentes grupos hierárquicos dentro do espaço fabril e, quais os valores e crenças que perpassam cada grupo socioeconômico, qual a práxis social desses distintos grupos dentro da empresa, entre outras questões. Esse olhar nos permitirá compreender o processo saúde-doença, as consequências da organização do trabalho para a saúde, as defesas coletivas assumidas pelo conjunto de trabalhadores ante a ofensiva produtiva, condições de trabalho, evitando que o biológico justifique quase tudo ou que a ideologia da autoculpa, dos medos e da vergonha seja instrumentalizada e cultivada, omitindo de forma simultânea as causas contidas no espaço social do trabalho, geradoras de adoecimentos e sofrimento.

A partir dessa perspectiva, devemos considerar o espaço social do trabalho como o lugar do trabalhador em permanente relação de produção e enfrentamento. E nesse lugar há riscos psicossociais que estão relacionados com o conteúdo do trabalho, com as características e o desempenho das tarefas; com o ritmo e as metas abusivas; com as tarefas sem sentido e as exigências excessivas; com o despotismo fabril, hierarquias assimétricas e fechadas; com o estilo de liderança, promoção e avaliações; com a falta constante de diálogo e de respeito, reconhecimento e desconfiança. Nesta breve discussão, devemos ainda considerar as características do trabalho, como, por exemplo, o projeto de trabalho, a segurança e condições físicas do meio ambiente; o trabalho em turno e noturno, as avaliações subjetivas em especial, nos estágios probatórios e sua consequente e frequente desvalorização; os conflitos prolongados e gerados pelo não reconhecimento diante de elevadas demandas; as repercussões das humilhações sofridas e suas consequências nas relações afetivas e familiares. Essa constelação de fatores pode afetar tanto o bem-estar e a saúde do trabalhador como o desenvolvimento do trabalho, pois interfere tanto e na sua vida profissional como na pessoal.

3.2 Compreender o assédio moral nas relações laborais

Em concordância com o explicitado até este momento e a partir da perspectiva histórico-social, inscrevemos o assédio laboral nesse cenário de intolerâncias e ganâncias e no qual os atos de violência ocorrem e se reproduzem no micro e no macroespaço das relações de poder, nutrido e alimentado pela cultura organizacional. Portanto, o assédio laboral resulta de uma jornada de humilhações, sendo, deste modo, uma forma de tortura psicológica, que ocorre tanto na exposição direta como indireta aos atos negativos. Seu pressuposto é a repetição sistemática dos atos que humilham, constrangem e desqualificam, evidenciando um conflito entre o agente do poder e seus subordinados. Terror que se inicia com um ato de intolerância, racismo ou discriminação, que se transforma em perseguição, isolamento, negação de comunicação, sobrecarga ou esvaziamento de responsabilidades e grande dose de sofrimento.

Como dizem os trabalhadores, se a empresa não maltrata, também não trata. Isso significa que são levados aos limites daquilo que um ser humano pode suportar, moral e fisicamente, o que impacta cada um de forma negativa, impondo-lhe o sentimento de inferiorização e desvalorização, e facilitando, muitas vezes, a busca de drogas como o álcool. Se existe a ameaça de ser demitido e perder o emprego, isso significa um "grande golpe", na medida em que trará problemas econômicos, o que causa estragos em sua identidade, alterando a autoimagem e interferindo em suas emoções e relações afetivas. Como diz o popular: "Cérebro que não pensa, coração que não sente". Mas não é tão simples assim, pois o mal-estar resultante advém da perda de sentido e sentimento de culpa, por não ter aderido ou compreendido esse universo paradoxal que não reconhece seu valor.

Cabe perguntarmos: como encarar essa realidade quando se é sujeito e objeto de um processo de desmantelamento individual e coletivo? Pode ser que esse trabalhador se sinta menos autônomo e menos capaz de mudar as coisas. Aqui, um paradoxo: sabemos que a experiência ajuda a conhecer o mundo que nos rodeia. E se sabemos que a ação organizada e conjunta é capaz de mudar o mundo de tantas maneiras, por que não se organizar, trabalhar em conjunto e lutar para mudá-lo? Aqui, a plasticidade enquanto capacidade de se adaptar e conservar as marcas das mudanças, capacidade de criar, elaborar, reelaborar, combinar experiências passadas e criar novas normas, via imagens e ideias, está impedida.

É desnecessário reafirmarmos que o trabalho em sua conjugação contemporânea gera diferentes formas e manifestações de violência, o que resulta em um processo de subjetivação precarizado tanto para trabalhadores não qualificados como para os altamente qualificados, que a cada dia disputam os empregos disponíveis. Poderíamos afirmar, sem receio de errar, que o mundo do trabalho moderno carrega a marca do seu período histórico, caracterizado por maior exploração e acúmulo de riqueza em mãos de poucos. Nesse contexto, qualquer que seja o ato de intolerância sofrido no âmbito laboral, é a memória de cada trabalhador humilhado que nos coloca em contato com as histórias vividas no local de trabalho e cujos traços, gestos, sutilezas e lembranças ele conserva vivos. São recordações transversadas por insegurança e medos, mesmo quando temos em nosso país certa estabilidade social na oferta de empregos. Entretanto, isso não significa empregos de boa qualidade ou trabalho decente; não assegura a ascensão profissional, não oferece perspectiva de estabilidade, as jornadas semanais ultrapassam as cinquenta horas, e a grande oferta de emprego está centrada no setor informal e terceirizado. Aqui, é possível perguntar se essa violência cotidiana é fruto das relações interpessoais ou resultado da organização capitalista do trabalho.

Respondemos afirmando que a causalidade do assédio laboral está centrada nos modos de organizar e administrar o trabalho, sendo sustentado por uma cultura de intolerância. Como variáveis importantes, citamos a competição exacerbada, a supervalorização da hierarquia mesmo em empresas matriciais, avaliações sistemáticas e subjetivas; estágios mal definidos e prolongados, com responsabilidade acima da competência; cultivo permanente da cultura do medo, da culpa e insensibilidade com o sofrimento alheio; falta de pessoal, o que leva à sobrecarga física e mental dos trabalhadores, obrigando-os a "aceitar" o trabalho suplementar - quase sempre não pago; falta de definição de funções e responsabilidades, o que leva à ambiguidade de papéis e exigências indevidas; descarte dos adoecidos e acidentados do trabalho.

Há autores que compreendem esse conjunto de variáveis como uma política de expatriação descuidada e repatriação sem planejamento (Freitas, 2001FREITAS, Maria Ester de. Assédio moral e assédio sexual: faces do poder perverso nas organizações. RAE , Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 41, n. 2, p. 8-19, abr./jun. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rae/v41n2/v41n2a02.pdf>. Acesso: 2 maio 2015.
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), o que nos revela que o sofrimento é sempre, antes de tudo, do corpo, engajado no mundo e nas relações sociais com os outros. Daí, a falta de reconhecimento, de respeito e a intolerância cotidiana, obedecer à decisão política dos altos gestores, revelando que a violência no trabalho ostenta diferentes formas de precarização que afetam a percepção dos (as) trabalhadores (as) em relação aos novos riscos.

Partindo do pressuposto de que as diferentes manifestações de violência laboral têm raiz profunda na organização do trabalho, estamos reconhecendo que todos estão expostos aos atos que humilham e constrangem, mesmo quando a manifestação prática revela-se individualizada. É nesse contexto de precariedade de relações afetivas, fraternas e ausência do espírito de coletividade que o assédio laboral ocorre, constituindo uma das faces de um fenômeno mais amplo, a ganância por maiores lucros, a coação por produzir cada vez mais e melhor, a forma de gerenciar e que favorece relações de isolamento, de violência, de cerco moral e intolerância.

Sabemos que o abuso de poder cria focos de instabilidade e tensões, o que transforma o lugar de trabalho em um espaço degradado, inseguro e arriscado, que afeta a todos. Se o assédio moral é um processo complexo, devemos evitar conceitos simplistas, inaptos ou inadequados sobre o que é ou não é, em uma vã tentativa de dar conta de todas as variáveis, geradores de uma constelação de danos morais e que atingem a dignidade, a saúde, a liberdade e a personalidade, impondo dor e violando direitos fundamentais. Entretanto, é necessário resguardar o conceito de toda ação que cause desconforto, o que evitará que seja alegado em qualquer situação ou circunstância.

Ao pensarmos em medidas preventivas, devemos avaliar os riscos não visíveis e que devem ser identificados, eliminados, controlados, com propostas que vão desde o exaustivo esclarecimento e sensibilização quanto aos direitos do outro até a adoção de uma política explícita de tolerância zero à violência nas relações sociolaborais. Sabemos que o abuso de poder cria focos de instabilidade e tensões, o que transforma o lugar de trabalho em um espaço degradado, inseguro e arriscado e que afeta a todos. Na medida em que a empresa usa um discurso positivo, histórico e convincente, clamando a todos os seus "colaboradores" para cumprir a missão da empresa como se fosse sua, isso de alguma forma os afeta e interfere em seus sentimentos.

Se na atualidade entrou em cena um novo jeito de lidar com os corpos fora da norma, rebelados e adoecidos, excluindo-os por não serem produtivos, pergunto: o que é isso senão a vida nua (Agamben, 2010______. Nudez. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2010.), exposta e natural? Senão um obstáculo à liberdade e à autonomia? Senão a simbiose da intolerância à violência? Significa que o empregador assegurou e ampliou o seu direito de humilhar, assediar e excluir os "colaboradores" agora adoecidos? Vê-se aqui que a análise desse fenômeno - assédio laboral - deve ser compreendido como um risco não visível, inscrito na arena da organização do trabalho e dos fatores psicossociais, causadores e desencadeadores de exclusão, sofrimento, transtornos, e até mesmo morte por suicídio. Se o assédio moral é um processo complexo, devemos evitar conceitos simplistas, inaptos ou inadequados sobre o que é ou não é, em uma vã tentativa de dar conta de todas as variáveis, geradores de uma constelação de danos morais.

À guisa de conclusão

Ao pensarmos em medidas preventivas, devemos avaliar os riscos não visíveis e que devem ser identificados, eliminados, controlados, com propostas que vão desde o exaustivo esclarecimento e sensibilização quanto aos direitos do outro, até a adoção de uma política explícita de tolerância zero à violência nas relações sociolaborais. A médio prazo, deve-se elaborar e executar novas formas de organizar o trabalho, que não desordene e afete negativamente a vida dos trabalhadores, pois o assédio laboral ou sexual são processos vividos e testemunhado por todos, mesmo quando sua manifestação prática afeta diretamente apenas alguns. Daí ser necessário intervir nos processos de trabalho que buscam de forma desmedida a produtividade e a lucratividade e pensar em práticas que restituam aquilo que lhes foi capturado: a autonomia, a amizade, o respeito, a ajuda mútua, a generosidade, o reconhecimento ao saber fazer, os laços de camaradagem.

Na atualidade, já não podemos retornar às condições que perdemos, mas podemos e devemos mergulhar nas trevas do presente (Agamben, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.), para escavar, compreender e criar um novo modo de trabalhar, sem meias-luzes, sem humilhações, sem autoritarismos, sem abuso de poder e coerções. Sem máquinas e câmeras que vigiam e controlam. Sem punições aos adoecidos e por isso, improdutivos. Não se pode aceitar que em nome da motivação se exponha o trabalhador ao ridículo; ou em nome do cômico, seja exposto a humilhações.

Cabe investigar o clima organizacional na lógica dos afetos e relacionamentos humanos, ou seja, as pressões que dissolvem a sociabilidade interferindo na identidade e processos de subjetivação no trabalho. Cabe compreender como as emoções tristes, os mecanismos de defesa e negação que estão presentes no assédio laboral (e tidos por muitos como naturais, inatas e irracionais e, portanto, do campo do fingimento), surgem e se mantêm, tendo reflexos negativos no cotidiano do trabalho e ampliando-se no âmbito familiar. O plano é aberto e a tese é simples: devemos ter em mente que o real é integralmente inteligível, ou seja, as nossas emoções são como lentes que nos possibilitam "enxergar" as condições que nos fazem padecer, nos revelando que os afetos são acontecimentos no corpo e decorrem de encontros com outros corpos, com outros seres, com processos de trabalho em espaços sociolaborais e com os quais entramos e estamos em relações, que tanto podem nos decompor como compor (Espinosa, 1992ESPINOSA, B. Ética. Lisboa: Relógio D'Água, 1992.), mostrando a necessidade de mudanças. Daí que ao implantarmos medidas preventivas, devemos focar tanto a instituição como o coletivo, variando desde cursos de sensibilização, acolhimento, apoio, orientação, até mudanças na organização do trabalho. Se observarmos que pouca transformação ocorreu, devemos repensar as causas, o que é da organização de trabalho ou das formas de administrar.

Portanto, devemos buscar a causalidade não somente indo à raiz dos problemas, mas, em especial, submergindo nas entranhas da relação capital e trabalho e encontrando suas contradições. Excluir essa dimensão é abstrair-se da realidade concreta, pois o assédio laboral deve ser compreendido como um risco não visível derivado dos modos de organizar e administrar o trabalho; das condições laborais estabelecidas e vetores psicossociais assumidos; da cultura organizacional que induz a reproduzir as fofocas e boatos pelo "ouvir dizer" do senso comum, contando com total tolerância dos gestores a essa nefasta cultura do "disse que disse".

Uma vez garantida a análise das mutações na organização do trabalho, é necessário refletirmos que em todos os continentes, em especial o nosso, o assédio laboral não tem sua causalidade nas pessoas que laboram, mas sim na forma predatória de o capitalismo organizar o trabalho, buscar o lucro e expropriar a saúde e as vidas de milhares de trabalhadores (as)! Entretanto, lembramos que nada grandioso se pode fazer na vida sem um poderoso sentimento. E, nesse sentido, a desconstrução do assédio laboral e a intolerância social são faces da mesma moeda, o que exige recuperarmos a dimensão ontológica, levando em conta, em nossas reflexões, que vivemos uma crise que atinge tanto a dimensão ética como social, laboral e da saúde. Não queremos dizer que seja fácil, porém temos certeza que é possível e necessário incluir a dimensão histórica-social na análise teórica e nas ações práticas, sensibilizando os coletivos para mudanças necessárias e possíveis.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2015
  • Aceito
    08 Jun 2015
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